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Ator acusado de roubo no palco diz não aceitar desculpas: "Não tenho obrigação"

Na carta aberta, a Companhia Antropofágica falou sobre o racismo presente na situação e respondeu ao pronunciamento feito pela APCA sobre a denúncia de Giu Alles

Da Redação

Ator acusado de roubo no palco diz não aceitar desculpas: "Não tenho obrigação"
Reprodução/APCA

A Companhia Antropofágica publicou um depoimento do ator Giu Alles sobre acusação de roubo de prêmio, em pleno palco, durante evento na última terça-feira (02). Em carta aberta, o artista explicou o ocorrido e disse não ter aceitado as desculpas dos acusadores após constrangimento público. “Eu fiquei constrangido por ter sido interpelado no palco, durante a entrega da premiação, e de estar me movimentando num momento em que deveria estar em silêncio respeitoso à fala dos outros colegas que agradeciam pelo prêmio”, disse.

Giu Alles explicou que a acusação de roubo do prêmio aconteceu enquanto ele ainda estava no palco, antes de discursar sobre a vitória da Companhia Antropofágica na categoria de teatro do Prêmio APCA, da Academia Paulista de Críticos de Arte. “Subimos todos, no espírito de coletividade, 32 pessoas no palco, só da Antropofágica. Eu estava atrás, ao lado direito, perto da coxia. Um integrante da Antropofágica estava ao meu lado com uma das duas ou três estatuetas que estavam passando de mão em mão. Pedi a estatueta para tirar uma foto. Tirei três fotos, e a bateria do meu celular acabou. Eu tinha um carregador na minha bolsa. Devolvi a estatueta, tirei a bolsa do ombro, abri-a, pluguei o carregador no celular, coloquei o celular na bolsa, fechei e devolvi a bolsa ao ombro”, contou. 

“Um momento depois, alguém me chamou do lado do palco — não reconheci quem era. Ele me explicou que era preciso devolver a estatueta, que era cênica. Respondi a ele que eu já sabia disso, e que ele deveria ver com quem estava a estatueta, pois não estava comigo. Imediatamente ele apontou para alguém que estava atrás dele e disse: “ele me disse que você colocou o prêmio na bolsa””, continuou.

Giu explicou que, depois da acusação, abriu a bolsa para provar que não havia roubado a estatueta cenográfica. “O que eu poderia responder? Isso já havia sido dito... Se ele duvidava, só havia uma resposta possível, abrir minha bolsa e mostrar a ele que meu gesto foi de guardar o celular e não a estatueta”, disse. O artista explicou que, depois da situação, o segurança se desculpou pelo constrangimento, mas ele não aceitou as desculpas: “Ele empalideceu e me pediu mil desculpas… Eu disse apenas a ele que não, eu não desculpava. Não tenho obrigação”.

Me recolhi e fiquei quieto, de costas para o sujeito, me controlando para não ficar triste ou com raiva, para não estragar a alegria dos meus amigos.

Giu Alles explicou que, depois do ocorrido, os integrantes da Companhia Antropofágica, que testemunharam a acusação, decidiram se pronunciar no palco. “Um integrante da Antropofágica que viu tudo falou ali na hora com outros integrantes sobre o que acontecera, e o grupo decidiu se pronunciar ali mesmo. Lemos o texto que estava preparado, de nosso agradecimento. Devolvemos o prêmio, conforme o protocolo. Procurei o homem que me havia interpelado e não o encontrei em lugar nenhum”, finalizou.

Na carta aberta, a Companhia Antropofágica falou sobre o racismo presente na situação e respondeu ao pronunciamento feito pela APCA sobre a denúncia de Giu Alles.

Leia carta aberta na íntegra:

Não faz muito tempo uma furadeira foi confundida com uma arma; pouco tempo depois foi a vez de um guarda-chuva ser tomado por fuzil; recentemente, um pedaço de madeira e até mesmo um saco de pipoca ludibriaram as forças policiais – todos esses equívocos culminaram na morte de pessoas negras; naqueles já julgados pelo poder público, os assassinos foram inocentados. A lista dos ditos “ruídos” é tão extensa que seria o caso de se perguntar se tais erros de interpretação não são a regra, mais do que a exceção. 

Cumpre, nesse sentido, explicitar o óbvio: houve, sim, um mal-entendido. Sempre há… Mas ele, ao contrário do que se poderia pensar, não desmente supostas atitudes racistas; ao contrário, as revela. Em um país em que o mito da miscigenação foi durante tanto tempo a forma pela qual as relações raciais foram entendidas, é somente naquilo que escapa à razão, naquilo que dribla as boas intenções, que podemos encontrar a realidade que tanto se tenta esconder. Para sondar o insondável, para chegar ao recalcado, precisamos de um olhar mais sensível, atento aos detalhes e disposto a fazer perguntas, mais do que a dar respostas. Mas precisamos também de fatos, não de suas versões distorcidas e interessadas. 

Por que a abordagem se deu durante a entrega do prêmio, e não depois dela? 

Não passou pela cabeça dos bem-informados que privar um ator de ouvir os agradecimentos de seus colegas, em nome de um suposto mal-entendido, seria, por si só, já um constrangimento? 

Qual era o objetivo dos bem-intencionados ao não se satisfazerem com a resposta, dada pelo ator e omitida até agora, de que o prêmio não estaria com ele, se não forçá-lo a uma revista disfarçada e aparentemente voluntária? 

Qual o sentido de compartilhar a informação de que alguém teria visto o troféu sendo colocado dentro da bolsa, se não forçá-lo a uma revista disfarçada e aparentemente voluntária? 

Por que um homem negro, no momento em que recebe um prêmio, abriria sua bolsa voluntariamente? Se tantas pessoas estavam mal-informadas em relação à natureza dos troféus, por que não informar a todos os presentes? Por que o homem que interpelou o ator e disse querer se desculpar não ficou para elucidar, ali na hora, o suposto “mal-entendido”? 

Não nos interessa, neste caso, cancelar ou linchar ninguém, nem pessoalizar os acontecimentos. Mas precisamos encarar a realidade: há várias recorrências em todos esses mal-entendidos, a primeira delas é certamente a imagem do negro como suspeito padrão, como aquele ser perigoso, sempre propenso a toda sorte de contravenção, aquele, ao fim e ao cabo, que precisa ser vigiado e cuja palavra não é confiável. Essa é uma imagem preconceituosa e racista, impregnada no inconsciente deste país e responsável pelas inúmeras violências a que estão sujeitos os mais vulneráveis no Brasil. Do enquadro em um espaço “sem seguranças” até o genocídio policial, a gramática é semelhante; diante da incerteza em relação a pessoas negras, não se deve hesitar: atira primeiro, pergunta quem é depois. Primeiro revista, depois se desculpa pela desconfiança. Os ditos mal-entendidos tendem, desse modo, a se resolver sempre em prejuízo das vítimas, e não de seus algozes. 

O fato de esse episódio ter se dado justamente em um espaço plural, cuja defesa aberta e necessária da diversidade se faz não só com palavras politicamente corretas, mas também com o reconhecimento genuíno daqueles que merecem estar representados nesse espaço, só prova o quanto estamos diante de uma questão estrutural. 

Diante disso, escrevemos esta carta como um ato antirracista; mais um entre tantos outros que vimos e recebemos de maneira solidária nos últimos três dias – e os quais gostaríamos de publicamente agradecer. Que não se restrinja à condenação de um ou outro indivíduo, mas que seja condenação inexorável do racismo estrutural. Que possamos propor, junto a outras coletividades, a outros movimentos sociais, a outros grupos de teatro, ações em que o racismo possa ser banido, junto com suas outras expressões congêneres.

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